A Extraordinária História da
Descoberta da Digestão

Uma das funções mais importantes da nutrição humana é a envolvida no processamento dos alimentos no trato gastrointestinal. O valor nutritivo dos alimentos, e o seu efeito sobre nosso bem-estar e saúde dependem muito de um perfeito funcionamento do complexo sistema de digestão, emulsificação, absorção e excreção. E a primeira "estação" dessa verdadeira linha de processamento químico e mecânico é o estômago, que no ser humano é um sofisticado órgão de armazemento temporário e primeira digestão, através do suco gástrico, que tem ácidos e enzimas (substâncias que quebram os alimentos em seus constituintes mais elementares, para serem absorvidos pelas mucosas intestinais).

Até meados do século 19, os cientistas tinham poucos dados sobre o funcionamento do estômago, e qual era seu papel verdadeiro no sistema digestivo. Conheciam muito bem e tinham descrito com detalhes sua anatomia, e sabiam da existência do suco gástrico e dos movimentos do estômago (peristalse). Através de suas principais patologias, como as úlceras e os tumores, sabiam que o estômago tinha um papel preponderante na alimentação, pois quando falhava ocorriam graves problemas, até mesmo a desnutrição e a morte.

O conhecimento no entanto, era quase sempre de natureza teórica e especulativa. Os proponentes se dividiam em dois campos antagônicos: a escola da iatroquímica achava que a digestão era um processo quimico, semelhante à dissolução de substâncias, enquanto que a escola da iatromecânica postulava que a digestão era um processo mecânico, de trituração dos alimentos, que começava com os dentes e prosseguia com a ajuda das contrações estomacais e intestinais.

No entanto, foi um humilde médico militar servindo na fronteira dos EUA, o Dr William Beaumont, quem pela primeira vez abriu as portas do conhecimento científico sobre a fisiologia do estômago e resolveu essa disputa. E isso aconteceu devido à uma "cobaia" humana, gerada por um dos mais raros eventos na história da medicina. É uma história extraordinária, como veremos.
 

Um Evento Raro


No dia 6 de junho de 1822, na Ilha Mackinac, no norte do estado de Michigan, um explorador e caçador de peles franco-canadense chamado Alexis St. Martin levou um tiro acidental na parte superior esquerda do abdômen. Uma ferida do tamanho da palma de uma mão se abriu, mostrando parte de um pulmão, duas costelas e o estômago. O médico militar do posto de fronteira, Dr. William Beaumont, foi chamado imediatamente, e tratou a ferida. No entanto, embora tentasse repetidamente, a ferida não se fechou, formando o que hoje conhecemos como uma fístula gástrica externa, um acontecimento muito raro, se não for feito propositadamente.

Em qualquer outra situação, St. Martin teria morrido de uma infecção, e o médico acabaria por desistir. Mas o acaso uniu um homem extraordinário, o Dr. Beaumont, com a rarissima situação de St. Martin ter sobrevivido por muitos anos depois do acidente, sem jamais a fistula ter sido fechada. Como St. Martin ficou incapacitado para o trabalho, o Dr. Beaumont resolveu ajudá-lo, e o contratou como empregado doméstico.

Foi apenas em 1o. de agosto de 1825 (três anos depois do acidente), que o Dr. Beaumont teve a feliz idéia de começar a fazer experimentos com o estômago de St. Martin, tornando-se a primeira pessoa a conseguir observar a digestão gástrica diretamente. Dessa forma, ele entrou para a história da medicina e se tornou o "pai da fisiologia gástrica".

Beaumont começou por amarrar pequenos pedaços de comida em um fio de seda, e introduzí-los pela fístula no estômago de St. Martin. Ele testou vários tipos de carnes, vegetais crus e cozidos, pão, etc. Passadas uma, duas e três horas, Beaumont puxava o fio de volta e anotava o grau de digestão dos alimentos. Beaumont repetiu os experimentos com seu empregado em jeju, e também mediu a temperatura interna do estômago (que ele descobriu ser de 42 graus Celsius). Ele retirou suco gástrico do estômago de St. Martin e incubou pedaços de carne em um tubo de ensaio, mantido à mesma temperatura. Os experimentos mostraram que, enquanto o estômago digeria o mesmo pedaço totalmente em duas horas, fora do corpo, demorava 10 horas.
 

Os Experimentos Continuam


Como Alexis St. Martin casou-se e mudou para outra cidade, o Dr. Beaumont pode retomar os experimentos com a fístula apenas em 1829, e depois novamente em 1832. Nessas séries de experimentos, ele determinou os efeitos do clima, da temperatura e das emoções sobre a digestão. Como St. Martin ficou irritado uma vez com os experimentos (ele não gostava de ver quando os pedaços semi-digeridos eram retirados do estômago), Beaumont fez a extraordinária observação que a raiva prejudicava a digestão. Descobriu também que o exercício melhora o processo digestivo. Beaumont também descobriu que os vegetais demoravam mais do que carne para serem digeridos, e que o leite coagulara antes de ser digerido.

Em 1833, o Dr, Beaumont publicou um livro contendo todas suas detalhadas observações, com o título de "Experiments and Observations on the Gastric Juice and the Physiology of Digestion.", que obteve imediato sucesso, firmando a reputação internacional do autor como o criador do método experimental direto no estudo da fisiologia gastrointestinal.
 

Uma Contribuição Notável


Os experimentos e observações do Dr. Beaumont determinaram de forma inequívoca muitos fatos novos sobre a fisiologia da digestão, e derrubaram outras tantas noções, mantidas desde a antiguidade, e que não passavam de simples suposições, baseadas em convicções filosóficas, e não em dados científicos. Por exemplo, antes de Beaumont, acreditava-se que o estômago funcionasse como uma espécie de moedor de comida, através das contrações estomacais, e que ele processava de forma sequencial os diferentes tipos de alimentos. Postulava-se também uma função seletiva para o estômago, que possuiria um "espírito"ou fluido que separava os alimentos "bons", e descartava os "maus".

O Dr. Beaumont comprovou claramente que nada disso era verdade: a digestão de todos os tipos de alimentos se iniciava ao mesmo tempo, sendo que o suco gástrico era o responsável pela dissolução dos alimentos sólidos, necessitando de uma temperatura elevada para tal. A digestão podia se processar fora do corpo, usando o suco gástrico "in vitro", e os vários alimentos tinham tempos de digestão distintos, sendo que os ricos em gordura eram os que mais demoravam. Beaumont também mostrou que fatores externos, como o exercício, as emoções e até o clima influenciam na digestão.

As pesquisas científicas básicas sobre a fisiologia da digestão haviam sido realizadas em laboratórios europeus no final do século 18, utilizando animais. O fisiologista francês René-Antoine Réaumur (1683-1757) demostrou experimentalmente que os movimentos do estômago tinham pouca importância na digestão, ao introduzir os alimentos através de tubos no estômago, o que os protegia das contrações peristálticas, mas sem isolá-los da ação do suco gástrico. O italiano Lazzaro Spallanzani (1729-1799) determinou conclusivamente em 1780 que a digestão gástrica é um processo químico, com muitos e geniais experimentos realizados com o suco gástrico "in vitro". Seus trabalhos foram completados pelo inglês John Hunter, firmando-se a teoria da digestão quimica por volta de 1834.

Infelizmente, a análise química disponível na época de Beaumont, Reaumur, Spallanzani e Hunter era ainda pouco desenvolvida, e estes cientistas nunca puderam saber com precisão quais eram seus constituintes, e porque eram capazes de digerir os alimentos. Isso só viria a acontecer no começo do século seguinte.

Epílogo

O que aconteceu com Alexis St. Martin? Depois dos últimos experimentos em 1832, ele retornou ao Canadá e nunca mais voltou a ver o bom Dr. Beaumont, seu salvador. Ele se estabeleceu como lavrador e trabalhador rural itinerante, e tornou-se um alcoolatra. Embora se queixasse de crescente problemas de digestão e desconforto com a fístula, ele faleceu com a avançada idade de 86 anos (para a época, e considerando-se sua condição médica), ou seja, 58 anos depois do acidente que abriu a fístula. Sua família, com medo de uma autópsia, enterrou-o em local secreto, que foi revelado apenas anos depois de sua morte, por uma neta. Atualmente, uma placa na parede da igreja perto de onde está enterrado comemora o valor da contribuição de St. Martin e Beaumont à causa da ciência médica.

O Dr. William Beaumont continuou por muitos anos com sua prática clinica, terminando seus dias na cidade de St Louis, nos EUA. Faleceu em 1853, com a idade de 68 anos.
 
 

Para Saber Mais


Dr. William Beaumont's Life and Work

Frontier Doctor: William Beaumont, America's First Great Medical Scientist. Reginald Horsman, Univ. Missouri Press, 1996.

Lazzaro Spallanzani. La Scienza: Digestione
 

 

O Autor


O Prof.Dr. Renato M.E. Sabbatini é doutorado em fisiologia pela Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo, onde foi professor do Departamento de Fisiologia e Biofísica por 14 anos. Atualmente, é professor-adjunto da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas, coordenador da área de Informática Médica.
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